20/05/2015

Kafka à Beira Mar

2002 Haruki Murakami,
13ra edição 2009, Casa das Letras
Tradução de Maria João Lourenço

Loucura onírica regrada pela duas histórias paralelas, dura e volúvel como a pedra de entrada. As dualidades não são duais, são multidesdobradas em metáforas, símbolos e interpretações. Postas cá para os olhos e mentes do leitor.
Detective, contemplador. Murakami deixa a nossa mente ligar e preencher os espaços e concepções que deixa premeditadamente vazios. Um assassinado em sonho é tão grave como um real? Coronel Sanders a cumprir a sua desprezível função, simplesmente porque a sociedade o espera que o faça. O adulto e o adolescente são, na mesma pessoa, seres fundamentalmente diferentes. Podemos amar um e odiar o outro. Sonhar com a pessoa daqueles seis meses e meio. A jornada e o refúgio contemplado são o mais importante, a história, objectos poucos e a música.

62 "Que viva como se estivesse já morto: não terá nada a temer", escreveu Yamamoto Tsunetono, porventura o intérprete mais radical do bushido, código
de honra fundado, no século XVII, por Yanaga Soko e seguido pelos samurais", e alguns bascos.

141 É por isso que gosto de ouvir Schubert quanto viajo de carro. Precisamente pelo facto de a imperfeição por detrás de cada interpretação espreitar a cada curva. Essa profunda imperfeição artística estimula a nossa consciência, desperta os nossos sentidos. Se eu escutar uma interpretação absolutamente perfeita de uma peça absolutamente perfeita, posso cair na tentação de fechar os olhos e querer morrer ali mesmo.
Mas ao escutar a sonata em Ré maior apercebo-me das limitações próprias da capacidade humana e torna-se claro para mim que, até certo ponto, a perfeição só pode ser atingida através de uma série de imperfeições.

219 É segunda-feira e a biblioteca está fechada. Trata-se de um sítio calmo por natureza, mas em dia de descanso transforma-se num mundo esquecido pelo tempo. Ou então num local que sustém a respiração, com a esperança que o tempo não dê por ele.

232 Homens vazios segundo T. S. Elliot: almas que preenchem sem piedade a falta de imaginação com pedaços de palha seca, sem terem consciência do que estão a fazer. Insensíveis, que te lançam à cara palavras vazias de sentido, tentando obrigar-te a fazer o que não queres.

362 Coronel Sanders: O bem e o mal não me dizem nada. Sou um homem muito pragmático. Dêem-me um objectivo neutro e tudo o que me interessa é realizar a função para a qual fui programado. Verificar a relação de forças entre os vários mundos e certificar-me que está tudo em ordem, por forma a garantir que a relação entre a causa e o efeito funcionam e que as coisas desempenham o seu papel original.

380 Pego numa mão cheia de areia e deixo-a correr entre os dedos. Cai e, tal como acontece com o tempo perdido, torna-se parte do que já lá existe.

400 Jean Jacques Rousseau definiu, até certo ponto, civilização como o estádio em que as pessoas constroem vedações à sua volta. A civilização é o produto da falta de liberdade. As pessoas que constroem barreiras altas e sólidas são as que melhor sobrevivem.

479 - Acredita que a música tem o poder de mudar as pessoas? Que uma pessoa pode ouvir uma certa e determinada peça de música e conhecer uma grande mudança dentro de si?
- Claro que sim. Passamos por uma experiência, que funciona como uma espécie de reacção química, capaz de transformar algo que temos dentro de nós. Quando, mais tarde, reflectimos sobre isso, descobrimos que todos os padrões por que nos regemos se alargam mais um furo e que o mundo se abriu diante de nós de forma inesperada. Sim, já passei por isso. Não tantas vezes como isso, mas já me aconteceu.

490 Corvo: A guerra gera mais guerra. Lambuza-se com o sangue violentamente derramado, alimentando-se de carne morta. A guerra é em si mesma uma forma de vida perfeita e acabada.