José Saramago, Editorial Caminho, 1984; 2004 34a edição
Alegoria do agora no passado. Tragédia de todos os que perseguem o vão sonho de voar. Tragédia mesmo a voar, porque Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sóis, tendo voado um com o outro, são agrilhoados ao Convento de Mafra por uma sociedade 'superior' que vive à custa das massas condenadas ao sacrifício. São presos ao chão e eventualmente queimados na fogueira pelo preconceito e hipocrisia de uma infeliz e vazia elite.
27 Mas esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro.
42 À porta duma taberna que ficava ao lado da casa dos diamantes, Baltazar comprou três sardinhas assadas, que, sobre a indispensável fatia de pão, soprando e mordiscando, comeu enquanto caminhava em direcção ao Terreiro do Paço. Entrou no açougue que dava para a praça, a regalar a vista sôfrega nas grandes peças de carne, nos bois e porcos abertos, quartos inteiros pendurados dos ganchos. A si próprio prometeu um festim de viandas quando lhe desse o dinheiro para isso.
141 Não choveu todo o caminho. Só o grande tecto escuro que se alongara para o sul e pairava sobre Lisboa, raso como as colinas no horizonte, parecia que se levantando a mão se tocaria na primeira flôr da água, às vezes é a natureza boa companhia, vai o homem, vai a mulher, as nuvens a dizerem umas às outras, A ver se eles chegam a casa, depois já poderemos chover. Entraram Baltasar e Blimunda na quinta, na abegoaria, e enfim começou a chuva a cair, e como havia algumas telhas partidas, a àgua escorria em fio por ali, discretamente, apenas murmurando, Cá estou, chegaram bem.
143 em menos de uma semana deixou a máquina de ser máquina ou seu projecto, quanto ali se mostrava poderia servir para mil diferentes coisas, não são muitas as matérias de que os homens se servem, tudo vai é da maneira de as compor, ordenar, juntar, veja-se a enxada, veja-se a plaina, um tanto de ferro, um tanto de madeira, e o que faz aquela, esta não faz
162 muito verdade é o que se diz, pequenas causas, grandes efeitos, por nascer uma criança em Lisboa levanta-se em Mafra um montanhão de pedra e vem de Londres contratado Domenico Scarlatti
171 Todos eles atiram os caroços para o chão, el-rei que aqui estivesse faria o mesmo, é por pequenas coisas assim que se vê serem os homens realmente iguais
230 Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro. De Portugal não se requeria mais que pedra, tijolo e lenha para queimar, e homens para a força bruta, ciência pouca.
231 Desde que na vila de Mafra, já lá vão oito anos, foi lançada a primeira pedra da Basílica, essa de Pêro Pinheiro graças a Deus, tudo quanto é Europa vira consoladamente a lembrança para nós, para o dinheiro que receberam adiantado (...)
Se a vaca que tão dócil se deixa mungir não puder ser nossa, ou enquanto nossa não puder vir a ser, ao menos deixá-la ficar com os portugueses, que em pouco tempo estarão a comprar-nos, fiado, um quartilho de leite para fazerem farófias e papos-de-anjo.
251 Se a vida não tivesse tão boas coisas como romer e descansar, não valia a pena construir conventos
261 Em cima deste valado, está o diabo assistindo, pasmando da sua própria inocência e misericórdia por nunca ter imaginado suplício assim para coroação dos castigos do seu inferno.
285 Está longe daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que poderemos então dizer, afinal estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade me perdoa o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos, Mas graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem faltado, Pois não, e a minha experiência contabilística lembra-me todos os dias que o pior pobre é aquele a quem o dinheiro não faltam isso se passa em Portugal, que é um saco sem fundo, entra-lhe o dinheiro pela boca e sai-lhe pelo cu, com perdão de vossa majestade.
Sem comentários:
Enviar um comentário