03/10/2010

O livro do desassossego

Fernando Pessoa, Abril Controljornal 1982 (edição de 2000)


Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa

Do melhor que já li. Profundamente inquietante e bom.Tira-nos de nós e acorda-nos para os sonhos que são as nossas vidas. Aprendemos a arte de dar a mão ao antecansaço e, acima de tudo, a importância de, de vez em quando, não agir. Ficam apenas algumas das minhas passagens preferidas:


O cansaço de todas as ilusões e de tudo o que há nas ilusões. A perda delas, a inutilidade de as ter. O antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim. A paisagem, tão admirável como quadro, é em geral incómoda como leito. A vida é pronta e triste. Agir é repousar. Dizem os ocultistas - há momentos supremos da alma em que ela recorda, com a emoção ou com parte da memória, um momento, ou um aspecto, ou uma sombra, de uma encarnação anterior. E então, como regressa a um tempo que está mais próximo que o seu presente da origem e do começo das coisas, sente, em certo modo, uma infância e uma libertação.

133 Um bomba do existir me tocou nas mais profundas entranhas do espírito. Prefiro a derrota com o conhecimento da beleza das flores que a vitória no meio dos desertos, cheia de cegueira da alma. A sós com a sua cegueira separada. Lixo de estrelas e almas.

208 A bondade é um capricho temperamental 142 ter opiniões é estar vendido a si mesmo. Não ter opiniões é existir. Ter todas as opiniões é ser poeta.157 A vida é a busca do impossível através do inútil 162 A vida prática sempre me pareceu o menos cómodo dos suicídios.

Por arte entende-se tudo o que nos delicia sem que seja nosso - o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo. Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.270 saber iludir-se é a primeira qualidade do estadista 275 a acção é uma doença do pensamento. Um cancro da imaginação. Agir é exilar-se.toda a acção é incompleta e imperfeita.

352 226 Não é nos largos campos ou nos jardins grandes que vejo chegar a Primavera. É nas poucas árvores pobres de um largo pequeno da cidade. Ali a verdura destaca como uma dádiva e é alegre como uma boa tristeza. Onde há uma forma há alma. Deus é bom mas o diabo também não é mau.

315 Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã. Amar é cansar-se de estar só; é uma cobardia portanto, é uma traição a nós próprios 324 cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. 339 um decorativismo interior acentua-se como o modo superior e esclarecido de dar um destino à nossa vida, Tirando fotografias com a máquina do devaneio. 358 aristocracia interior 360 talvez a glória saiba a morte e inutilidade, e o triunfo cheire a podridão. Uma chávena de café, um cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as suas estrelas, o trabalho, o amor, até a beleza e a glória.

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