28/12/2014

A morte da audiência

Bruno Humberto, Dezembro 2014
Atelier Re.Al

Corajoso e deliciosamente intrusivo. Uma experiência única e inesquecível. Corre-se atrás do senhor vendado da mini bicicleta com canas, desvia-se do touro, atiram-se maçãs contra o corpo, esmaga-se o performer contra o chão, dá-se estaladas, insulta-se e chateia-se. A audiência rejubila até desaparecer. Termina-se a dançar um slow com facas atrás das costas. Único e brilhante.

Magic in the moonlight

Woody Allen, 2014, Com Colin Firth e Emma Stone

Leve niilismo céptico e delicioso, típico de Woody Allen. O poder da ilusão e magia estão, afinal, nos lugares mais óbvios de sempre: amor e vingança.

Música em Degradé

20 Novembro 2014, Meo Arena

Dá-me lume. Jorge Palma e o seu vozeirão louco e sóbrio fizeram a noite. Mar de luzes e pausa no corropio da labuta. O pequeno ensemble Allis Ubo brilhou. Apesar da acústica não facilitar, a grande orquestra  e ópera de Elisabete Matos merece a mais sincera vénia. Camané canta tão fácil, canta a
saber de um rio.

26/12/2014

Boyhood

2014, Richard Linklater
Com Ellar Coltrane, Ethan Hawke, Patricia Arquette

Ver alguém ou um grupo de pessoas a envelhecer directamente no écran, sem truques, é uma experiência que vale a pena. E a história, de um círculo de famílias a ser como as famílias são, não estraga a experiência. A vida em lento 'fast-forward'.

Interstellar

Christopher Nolan, 2014
Com Matthew Macconaughey, Anne Hathaway, Jessica Chastain

Macconaughey excelente, num ambicioso exercício sobre o futuro. Uma bela odisseia no espaço, agradavelmente louco na forma como aborda os pressupostos científicos da viagem no espaço e nos tempos. Questiona os princípios básicos da forma como projectamos o futuro. Lembra-nos os desvarios, interessantes embora às vezes cliché, que nos unem a todos: a vontade de viver, o amor.



O avarento

Moliére, Novembro 2014
Produção: Ensemble - Sociedade de Actores
Teatro Nacional D. Maria II

A miséria do avarento, que todos afasta, que todos temem, que todos chacotam. Tentou, via intermediário duvidoso, propor um negócio usurpador ao próprio filho.É divertido o apaixonar pela mesma dama com que o filho quer fugir. E o que fica, quem é ele quando se vê separado do seu tesourinho?

O processo SAAL arquitectura e participação 1974-1976


Serralves, Outubro 2014

Talvez, com os mesmo recursos, a história do SAAL merecesse mais. Sem maquetes, sem elementos contadores de histórias mas com escadas gigantes a dominar o centro da sala.
Perceptibilidade limitada em muitas das fotos dos anos 70. Gostava de ter visto uma maquete daquela linha diagonal do Gonçalo Byrne. As faixas de luta num dos recantos é desconectada e não percebo o porquê de cartazes gigantes com nomes gigantes, a perder de vista. Os objectos recolhido do processo não têm, contudo, como falhar.

Monir Sharoudy Farmanfarmaian: Possibilidade infinita. Obras em espelho e desenhos 1974-2014
Os diamantes hipnóticos, a quinquilharia de Monir são castiços.


O melhor e o mais rápido, o pior e o mais triste, o mais longo, o mais complexo, o mais difícil e o mais divertido

Tim Etchells, Outubro de 2014
Encenação, Jorge Andrade

Os temas do longo título são apenas o pretexto, o molde para conversas de gala sobre as grandes questões. Bem escrito, para rir, e emocionante. O cão salta num tapete trampolim, a senhora corre ao longo do palco, fato branco impecável, serão eles crianças inquietas em disfarce?


25/12/2014

Fernando Mendes, o Bravo cujas natas lhe escorreram pela barba

D. Afonso Henriques tinha um chefe da casa civil, o mordomo-mor, e outro da casa militar, o alferes-mor, que não se davam bem.
Num jantar, Fernão Mendes, ou seja, Fernando Mendes, sim, Fernando Mendes, pai do chefe da casa civil,  o mordomo-mor, estava a jantar com o Rei e entourage, incluindo os "inimigos" Sancho Nunes, da casa militar.

Durante o jantar, Fernando Mendes, deixa, sem querer, escorrer um pouco de natas para fora da boca e pela barba.
Os Sancho Nunes partem o côco a rir, a gozar com ele.
Fernando Mendes jura vingança naquele jantar.
Fernando Mendes rouba a mulher de Sancho Nunes-pai, com a qual fica por consentimento de D. Afonso Henriques, e também arrasa os domínios de outro gajo que lá estava sentado a rir-se.
Fim

Fontes:

p. 64 "E este foi o que levou, por prema [zanga] de el-rei D. Afonso o primeiro de Portugal uma irmã que [o rei] tinha casada com D. Sancho Nunes, porque se riram dele ante elrei por um pouco de nata que lhe corria da boca, sendo hi comendo"
'História concisa de Portugal', José Hermano de Saraiva

"Na outra pequena narrativa dos Livros de Linhagens onde surge D. Afonso Henriques, vemos o rei comendo em Coimbra na companhia de alguns dos seus cavaleiros, entre os quais dois familiares seus por afinidade, D. Sancho Nunes, referenciado como seu genro, e D. Gonçalo de Sousa, referenciado como marido da sua neta15, e ainda D. Fernão Mendes, o Bravo, senhor de Bragança. Este último torna-se motivo de chacota por parte do grupo próximo do rei, em razão de “ũa pouca de nata que (lhe) caíra pela barva”. Reagindo mal a esses risos, segue-se a ira do despeitado senhor de Bragança contra o rei e os seus fidalgos, só aplacada, segundo reza a “estória” quando este finalmente cede e lhe dá a própria filha (que subtrai ao legítimo marido, Sancho Nunes) e as terras de D. Gonçalo de Sousa, obtendo assim o desagravo contra os dois cavaleiros “chufadores”".
Graça Videira Lopes http://www.fcsh.unl.pt/docentes/gvideiralopes/index_ficheiros/modelo.pdf

http://domsanchoprimeiro.blogspot.pt/2007/07/o-alinhamento-dos-mordomos.html

Um homem muito procurado

John le Carré
Dom Quixote, 1ra edição

Não sei se foi da tradução mal conseguida mas parecem haver peças, parágrafos, palavras que não batem certo, nem parece o le Carré do "Espião que saiu do frio".

O cenário tem potencial: Hamburgo pós 11 de Setembro, a cidade onde germinou a raís do mal,  o pai checheno corrupto que pôs um banqueiro alemão a dever favores e o filho destruído a escapulir-se pela Europa até uma sociedade que não o aceita. O terrorista 95 pct bom.  Tudo isso poderia funcionar mas acaba por não acontecer. Quem comete erros de tradução do calibre apresentado em baixo, quão fiel terá sido ao trabalho original?

"Depois de tomar banho, vestiu-se para correr: calções de lycra pelos joelhos, sapatilhas, uma blusa leve para um dia quente, colete sherpa e - na mesa de bambu ao lado da porta - o capacete e as luvas de pele. " "Do Santuário pedalou a toda a velocidade até uma bomba de gasolina"
p. 154

Mas não é tudo mau. 

"Na minha faculdade de direito falávamos muito sobre a lei estar acima da vida - disse ela. - É uma verdade fundamental da nossa história alemã: a lei não para proteger a vida, mas para abusar dela. Fizemo-lo com os judeus. Na sua forma americana actual, permite a tortura e o rapto oficial. E é infecciosa. O seu próprio país não está imune, nem o meu. Eu não sirvo esse tipo de lei. Eu sirvo o Issa Karpov. Ele é meu cliente. Se isso o embaraça, não lamento."

Afonso D. Keynes Henriques

Orçamento Estado 1179 ?

"Eu, Afonso, rei dos Portugueses, considerando a minha morte e o dia do severo juízo, quando cada um será retribuído segundo as suas boas ou más acções (...), tendo ponderado diligentemente, decidi dispor de certa parte da minha fortuna, isto é, de 22.000 maravedis que tenho depositados no Mosteiro de Santa Cruz e reparti-los em benefício da minha alma depois da minha morte da forma seguinte: primeiramente à Ordem do Hospital de Jerusalém, 8.000 mosmodis (...). Para a obra de de Santa Maria de Lisboa, 1.000 maravedis. Para a obra de Alcobaça, 500 maravedis. Para a obra da igreja de Évora, 500 maravedis. Para a obra de Coimbra, 500 maravedis. Para a obra do Porto, 500 maravedis. Para a obra de Braga, 500 maravedis. Para a obra de Viseu, 500 maravedis. (...) E dei já ao abade e frades de S. João de Tarouca 3.000 maravedis, que mando sejam destinados à ponte sobre o Douro. (...) Já dei ao mestre de Évora, Gonçalo Viegas, 10.000 maravedis para serem gastos em utilidade e defesa desta cidade quando for necessário. E deixo aos pobres que existem no bispado de Lisboa 1.000 maravedis; aos pobres que vivem em Santarém, Coruche, Abrantes, Tomar, Torres Novas, Ourém, Leiria e Pombal, 1.000 maravedis (...). Ao hospital novo de Guimarães, ao de Santarém e ao de Lisboa, 260 maravedis."

p. 73 e 74 "História Concisa de Portugal" José Hermano Saraiva

26/10/2014

Os homens que odeiam as mulheres

Stieg Larsson, 2005, 18ª edição - 2013 - pela Oceanos, do Grupo Leya

Este não é um policial de crime quarto fechado, é de ilha mais ou menos fechada. Stieg Larsson desenha e desenrola o mistério com classe e ritmo extremo. Um thriller-mistério, também crítica da violência sobre as mulheres e com um laivo da sua costela de académico especialista em movimentos de extrema direita na Europa. Irritou-me Blomkvist ter ido sozinho atrás do senhor suspeito depois de andar a levar tiros de caçadeira. Gostei da Austrália, dos muitos cafés em casa das pessoas e da investigação pelas fotografias.

Film, David Fincher, 2011
Com Daniel Craig, Rooney Mara
Parece que a parte final foi alterada, simplificada e logo uma das partes sobre a qual eu tinha, visualmente, mais interesse. Nem um cheirinho de Austrália. Gosto do trabalho de Rooney Mara mas Lisbeth é menos gira do que eu a imaginava apesar de, no livro, terem dito que não era bonita. O livro é melhor.

Built on glass

Chet Faker, 2014, Future Classic, Imagem
Direcção arte Tin&Ed

Deixa a mente correr lenta e ritmadamente por aí. Um branco ligeiramente acizentado, tendencialmente puro e limpo como quero a minha vida.
R&B e electrónica, um 'spin-off' de Chet Baker que canta sobre o sentimento de um Domingo preguiçoso? Sim, por favor.
Saxofone e electrónica, uma voz de constante, calma despedida. Serenidade.



I am sitting in a room different from the one you are in now

João Fiadeiro, 3 de Outubro de 2014, Atelier Real
Baseado em trabalho sonoro de Alvin Lucier

Catártico e inesperadamente fácil de gostar. Este mundo da composição em tempo real é mais fácil de viver que de explicar. Uma cadeira, uma fotocopiadora Canon, e bastante fita cola. O João, a sua voz em busca de si, vai-se desdobrando, experimentando versões até desaparecer numa pré-anunciada prisão de papel.

10/10/2014

Futebol Muji

Um japonês, com um caderno da Muji, desenhou jogadas do jogo em pequenos rectângulos invadidos por setas com o movimento dos jogadores. Outro homem, forte no elevador, tem uma mochila com uma grande antena e, ao descermos, ouve-se a rádio baixinho. Adeptos entram a meio da viagem, malcheirosos e bem dispostos.

Antes da conferência de imprensa ouve-se o leve bater das teclas e  murmúrios. Todos os olhos focam no 'steward' quando vem à porta. À entrada, estava a barriguinha do Dani e uns sapatos castanhos impecáveis.

Uma estagiária, inchada e perdida, move-se rápida e nervosamente. Olha em volta, desconfiada. Um relógio de parede branco, descentrado, torto, encosta o seu plástico pouco convictamente, olhando invejosamente a perfeita simetria de cores e logos dos patrocinadores: Heineken, Unicredit, TVI, PS4, Gazprom, Mastercard, Adidas. Foto 537.

"Now we can control our destiny" - José Mourinho

Sporting 0 v 1 Chelsea veludo
Nemanja Matic: cabeçeamento-balão
30 Set

OK computer

Radiohead, 1997, Parlophone

'Hey man slow down. Idiot slow down'.

Um dos álbums com o qual tive das maiores sensações de crescer na limitada habilidade de compreender toda a irracional complexidade à nossa volta.

Sublime crítica da ascenção da sociedade consumista, consumada e impessoal desde o final dos anos 90.

"The breath of the morning I keep forgetting. The smell of the warm summer air. I live in a town where you can't smell a thing, you watch your feet for cracks in the pavement"

"Up above aliens hover making home movies for the folks back home, of all these weird creatures who lock up their spirits, drill holes in themselves and live for their secrets".

www.radiohead.com "This is our website which we maintain as and when we feel like it. We hope you are ok. Thank you for listening."




29/09/2014

Yes

1995, Morphine, Mark Sandman

Suspiros saudosos e melancólicos de um saxofone à noite, à saída de um bar. Ou será talvez à entrada?
Uma das fotos no álbum é de uma asa de avião sobre um sol vermelho e nublado, em jeito de despedida deste mundo. Essa voz de Sandman assim se despediu, demasiado cedo. 'Gone for good': coisa mais triste; 'Honey White': coisa mais alegre.

28/09/2014

Arquitecturas Film Festival, 28 Setembro 2014

Sacred
Nuno Grande, 2014
Sublime banda sonora e steadicam desta curta-documentário.
Valioso arquivo do igreja do Sagrado coração de Jesus em Lisboa.

A Radiant Life
Meryil Hardt, 2013
Início satisfatório mas descamba para o desastre e aborrecimento. A Marselha de Le Corbusier, a apropriação e dificuldades dos habitantes da visão dele, mereciam mais.

The practice of architecture: visiting Peter Zumthor
Michael Blackwood, 2012
Um pouco feito às três pancadas, Kenneth Frampton abre a porta de casa do intenso e genial Zumthor, abrindo uma janela sobre a sua personalidade e método de trabalho. Os detalhes e preciosismos dos seus projectos mereciam imagens melhores e menos 3ds a retratar locais que já existem de pedra e cal.

Concerto Inaugural Temporada 2014 - 2015 Teatro Nacional de São Carlos

Maestrina Joana Carneiro, com violoncelista Johannes Moser
Orquestra Sinfónica Portuguesa
Coro do Teatro Nacional de São Carlos

20 Setembro de 2014

Poder absoluto. Arrepiante, intenso e inesquecível. ªUm corpo mágico de músicos para um espaço igualmente mágico, cheio de vida até ao mais alto camarote. A maestrina impõe respeito absoluto com a mais extrema das graciosidades. O violoncelista brilha tanto como os seus sapatos, sorri, mexe, sua, quase que grita. Danse générale de Maurice Ravel foi o clímax perfeito.

'Olá Mariana, estive a ler o 'booklet', e tal como eu te disse durante o concerto inaugural, o violoncelo de Johannes Moser era mesmo um Andrea Guarneri, de 1694'
'Deveras impressionada Daniel, não sei como o distinguiste àquela distância de um Giuseppe Giovanni Battista Guarneri'

Antonin Dvorak: Concerto para violoncelo e orquestra em si menor, op. 104 Allegro; Adagio ma non troppo; Finale

Luís de Freitas Branco: Antero de Quental Poema sinfónico para orquestra

Maurice Ravel: Daphnis et Chloé suite no. 2 para coro e orquestra: Lever du jour; Pantomine; Danse générale.

Alice

2005, Marco Martins, com Nuno Lopes
Edição especial - 2 discos, Lusomundo audiovisuais

A história é sobre Lisboa. Uma Lisboa que não é nova mas aparece pouco. É azul apagado, triste e solitário, na multidão. Um azul, mesmo assim estonteante, tal como o casaco de Alice.

Tal como a massa que entra e sai dos corações de Lisboa. Que se movimenta roboticamente, compassadamente, dia após dia. Cativante e dolorosamente apagada. Não tão diferente de Mário.

07/09/2014

Good Ol' Freda

Ryan White, 2013

Histório-documentário, simples e bem montada. Freda faz um excelente trabalho de jornalista, lembrando-se de pormenores incríveis. Uma contadora de histórias exímia, improvável testemunha da ascenção e queda da Beatlemania. Permite um olhar por dentro do círculo mais restrito dos Beatles, da sua logística, suas personalidades e também do papel fundamental dos 'managers', particularmente de Brian Epstein, e do antes e depois da sua morte.

Crónica de uma morte anunciada

Gabriel García Márquez 1981 (original)

Mais que contar uma história, Márquez conta um ambiente. A aldeia parece ser uma caricatura da nossa frequente hipocrisia colectiva, não sei se esta é uma interpretação válida. Sei que o brilho das facas de matar porcos assusta e que fiquei sem perceber quem desflorou indevidamente a noiva, causando a bagunça.

Romance de uma conspiração

João Paulo Guerra, 2010, Oficina do Livro

Ligeirinho mas informativo. Pedro Costa não conquista por exomplexo mas ganha a nossa simpatia como testemunha tímida mas corajosa do Verão quente e dos últimos anos da ditadura. A forma como tudo se une no final é improvável mas bom, é ficção. A Lisboa dele, a dos gatos, fica ao cima da minha rua.

A sombra do vento

Carlos Ruiz Zafón, Dom Quixote, 2004-2006

Brilhante desenvolvimento de personagens, especialmente de Julián Carax. As personagens e o mistério do puzzle vai sendo contado, desvendado do ponto de vista dos vários intervenientes num mistério passado e presente. Esta Barcelona mistura as distintas trevas de Fumero e Carax com a alegria e intensidade de Daniel e Fermín. Intrigante até ao fim.

96 "A televisão, amigo Daniel, é o Anticristo, e digo-lhe que bastarão três ou quatro gerações para que as pessoas não saibam nem dar peidos por sua conta e o ser humano regresse às cavernas, à barbárie medieval e a estados de imbecilidade que a lesma já ultrapassou lá para o pleistoceno. Este mundo não morrerá de uma bomba atómica, como dizem os jornais, morrerá de riso, de banalidade, fazendo uma piada de tudo, e aliás uma piada sem graça."

169 "O dinheiro é como qualquer outro vírus: uma vez podre a alma que o alberga, parte à procura de sangue fresco. Neste mundo, um apelido dura menos do que uma amêndoa coberta"

192 "Odestino costuma estar ao virar da esquina. Como se fosse um gatuno, uma rameira ou um vendedor de lotarias: as suas três encarnações mais batidas. Mas o que não faz é visitas ao domicílio. É preciso ir atrás dele."

221 "Às vezes Jacinta perguntava a si mesma se aquela paz sonolenta que devorava os seus dias, aquela noite da consciência, seria aquilo a que alguns chamavam felicidade.

05/09/2014

Cemitério de pianos

José Luís Peixoto, Bertrand 2006-2007

Todo o início começa num fim e nesta família Escher, que partilhei em cópia dupla na praia, um diagrama abre a porta ao circular da vida, seus constantes desgostos e raros momentos de paz de corridas e no meio do cemitério de pianos. Excelente inspiração em Francisco Lázaro.

283 "O tempo passava. E tinha a certeza de que uma parte de mim, como peças de pianos mortos, continuaria a funcionar dentro deles (...) éramos perpétuos uns nos outros."


22/07/2014

Drive

Nicolas Winding Refn, 2011, com Ryan Gosling

Nota artística 10. Pinturas em movimento de um fascinante submundo norte-americano. Não terei sido o único a desejar um casaco de escorpião igual ao de Ryan Gosling. Ele sem o casaco não seria tão carismático. Ele quer devolver $1.000.000 e é só chatices. Nunca tinha visto tal coisa.

O espião que saiu do frio

John Le Carré, 1963, 2009
Publicações Dom Quixote

Cria atmosferas como poucos vi fazer até agora. Sentimo-nos na pele de Leamas, a ser questionados, aterrados e intrigados pelas profundamente trabalhadas personalidades dos espiões e contra-espiões da República Democrática Alemã: Mundt e Fiedler. Aterramos em Tempelhof com Leamas, trabalhamos aborrecidos na biblioteca em Inglaterra, e enervamo-nos ao saber que temos 90 segundos para saltar o muro.

19/07/2014

Nos Alive 2014

Chet Faker
Rendido à voz, estilo, intensidade, ritmo e hispsterismo da barba e botão apertado no topo da camisa.
Talk is cheap, 1998 e No Diggity foram memoráveis. De longe o melhor concerto da noite, os Metronomy de 2014. Talvez seja o contraste da lentidão e calma das palavras com o acelerado da batida, uma combinação que, quantas mais vezes se ouve, mais faz sentido.

Jungle
Belo momento de dança, em particular com as electrizantes 'The heat' and 'Busy Earning'.
Ponham isto a tocar na discoteca por favor, que eu vou ali aprender a andar de patins para lhes fazer jus.

Unknown Mortal Orchestra
'So Good at being in trouble' estica-nos o cérebro e faz franzir a testa em deleite da qualidade dos acordes e da voz rouca.

The War on Drugs
Tímido e aconchegado 'feel good', aquele do 'Red Eyes', um pouco de Arcade Fire misturado com o estilo de Kurt Vile à Cobain, dá para abanar e sonhar um bocadinho.

Foster the People; The Libertines
Também deu para ouvir uns belos 'pumped up kick's e outros relances mas a experiência foi mais de hamburgueres, bifanas e gin com morangos frescos. Pete Doherty está branco e adoentado demais.

Madrugada Suja

Miguel Sousa Tavares, 2013, Clube do Autor

Uma simplicidade fácil de devorar em três dias. Desenha uma ligação entre um velho agarrado à sua solitária aldeia e o futuro homem mais poderoso de Portugal. Inteligente, perceptível  e reveladora a forma como Filipe, arquitecto paisagista, aprende o discreto método de corromper para reinar, para enriquecer num Portugal do passado recente. Agradáveis pedaçinhos do país guardados na aldeia e no restaurante à beira mar, que contrastam com a condenação aos subúrbios e aos resorts conspurcados.

Memorial do Convento

José Saramago, Editorial Caminho, 1984; 2004 34a edição

Alegoria do agora no passado. Tragédia de todos os que perseguem o vão sonho de voar. Tragédia mesmo a voar, porque Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sóis, tendo voado um com o outro, são agrilhoados ao Convento de Mafra por uma sociedade 'superior' que vive à custa das massas condenadas ao sacrifício. São presos ao chão e eventualmente queimados na fogueira pelo preconceito e hipocrisia de uma infeliz e vazia elite.

27 Mas esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro.

42 À porta duma taberna que ficava ao lado da casa dos diamantes, Baltazar comprou três sardinhas assadas, que, sobre a indispensável fatia de pão, soprando e mordiscando, comeu enquanto caminhava em direcção ao Terreiro do Paço. Entrou no açougue que dava para a praça, a regalar a vista sôfrega nas grandes peças de carne, nos bois e porcos abertos, quartos inteiros pendurados dos ganchos. A si próprio prometeu um festim de viandas quando lhe desse o dinheiro para isso.

141 Não choveu todo o caminho. Só o grande tecto escuro que se alongara para o sul e pairava sobre Lisboa, raso como as colinas no horizonte, parecia que se levantando a mão se tocaria na primeira flôr da água, às vezes é a natureza boa companhia, vai o homem, vai a mulher, as nuvens a dizerem umas às outras, A ver se eles chegam a casa, depois já poderemos chover. Entraram Baltasar e Blimunda na quinta, na abegoaria, e enfim começou a chuva a cair, e como havia algumas telhas partidas, a àgua escorria em fio por ali, discretamente, apenas murmurando, Cá estou, chegaram bem.

143 em menos de uma semana deixou a máquina de ser máquina ou seu projecto, quanto ali se mostrava poderia servir para mil diferentes coisas, não são muitas as matérias de que os homens se servem, tudo vai é da maneira de as compor, ordenar, juntar, veja-se a enxada, veja-se a plaina, um tanto de ferro, um tanto de madeira, e o que faz aquela, esta não faz

162 muito verdade é o que se diz, pequenas causas, grandes efeitos, por nascer uma criança em Lisboa levanta-se em Mafra um montanhão de pedra e vem de Londres contratado Domenico Scarlatti

171 Todos eles atiram os caroços para o chão, el-rei que aqui estivesse faria o mesmo, é por pequenas coisas assim que se vê serem os homens realmente iguais

230 Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro. De Portugal não se requeria mais que pedra, tijolo e lenha para queimar, e homens para a força bruta, ciência pouca.

231 Desde que na vila de Mafra, já lá vão oito anos, foi lançada a primeira pedra da Basílica, essa de Pêro Pinheiro graças a Deus, tudo quanto é Europa vira consoladamente a lembrança para nós, para o dinheiro que receberam adiantado (...)
Se a vaca que tão dócil se deixa mungir não puder ser nossa, ou enquanto nossa não puder vir a ser, ao menos deixá-la ficar com os portugueses, que em pouco tempo estarão a comprar-nos, fiado, um quartilho de leite para fazerem farófias e papos-de-anjo.

251 Se a vida não tivesse tão boas coisas como romer e descansar, não valia a pena construir conventos

261 Em cima deste valado, está o diabo assistindo, pasmando da sua própria inocência e misericórdia por nunca ter imaginado suplício assim para coroação dos castigos do seu inferno.

285 Está longe daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que poderemos então dizer, afinal estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade me perdoa o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos, Mas graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem faltado, Pois não, e a minha experiência contabilística lembra-me todos os dias que o pior pobre é aquele a quem o dinheiro não faltam isso se passa em Portugal, que é um saco sem fundo, entra-lhe o dinheiro pela boca e sai-lhe pelo cu, com perdão de vossa majestade.



A rapariga que roubava livros

2013, Brian Percival, com Sophie Nélisse, Heike Makatsch, Geoffrey Rush

Não se desenvolve muito velozmente, a guerra é má e os livros lá a ajudam. No meio dos Nazis haviam almas boas que não seguiam a linha. O melhor é a personagem da mãe vil que não é vil de todo.

BES Run Challenge Lisboa



7 Junho 2014

O convite, a desilusão pela venda como pãezinhos quentes, a ponta de sorte, as inscrições. Visitas viajantes para correr, que prazer. A corrida foi uma luta. O medo da chuva passou ao terror do calor. Início divertido, piada na praça do município, e batalha por debaixo da ponte. Os 5 km não estavam no ponto de retorno, ainda falta metade. Linha ténue de sombra, é para ela que corremos, demasiado fina. Chegada pela ribeira das naus, em obras, linda já. Apoteose e dôr no Terreiro do Paço, e ainda temos de dar a volta ao Rossio. Manjericos, bananas, maçã seca de Viseu, encontro com amiga estafada.

Tempo de chip: 52.46 min
Classificação: 1390 de 2778

Rui: 1h 3 min
Pierre: 59.48 min
Sandra:1h 29 min






17/05/2014

Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte

José Luís Peixoto, Quetzal, 2012

Escorreito e intimista, José Luís Peixoto guia-nos através de uma viagem improvável. O mundo alienígena da Coreia do Norte torna-se em fragmentos, por breves momentos, um pouco mais terreno.

A simplicidade das observações não aborrece. José Luís Peixoto nunca é pretensioso como seria fácil ser. Não julga demasiado, não se sobrepõe onde não deve, não sabe. Põe a nú a perplexidade quando é evidente: um dom admirável.


Miguel Araújo - Centro Olga Cadaval, 3 Maio 2014

Excelente concerto. Esperado um solo acústico, a equipa em torno de Miguel é completa, diversa e vibrante. Talvez, por vezes os sons se sobreponham, se abafem, mas Miguel Araújo não é só um cantor lamechas. Tem mais coração e ritmo que isso. Foi só para aí três vezes enjoativamente lamechas, num óptimo e improvisado fim de serão. Fizz Limão é top.

IndieLisboa 2014 - Competição nacional Curtas metragens

Caça Revoluções, Margarida Rego, 2013
Interessante sobreposição de ilustrações acabou por desembocar em lado nenhum, como seria, possivelmente, o seu objectivo.

Rosas Brancas, Diogo Costa Amarante, 2013
Estranho e perturbador. Desconjunturado como a família.

As figuras gravadas na faca com a seiva das bananeiras, Joana Pimenta, 2014
Eu sei que as memórias são lentas, paradas, solitárias, mas estas são de mais.

Ennui Ennui, Gabriel Abrantes, 2013
Tem um leitão a ser disparado por um canhão, um cameo brilhante de Obama e, no meio disto tudo, é inteligente nos extensos temas que aborda e critica através da sátira cómica. Brilhante!

Candidinha ; 'O Caso Sogantal'

Cinemateca, 14 de Abril 2014

Candidinha
António de Macedo para Cinequanon . RTP, 1975

Uma das meninas nem sequer vinha à sala onde desfilavam as modelos com o candelabro de cristal por cima. Vestidos, vendiam-nos por 300 contos. Pagar, pagavem tostões. Estavam a fazer piquete, a jogar bingo, a fazer directas para lutar, estudar e trabalhar. Depois, para casa para tratar das coisas do irmão que vinha da tropa e precisava de quem tratasse da roupa e comer. Era a mulher mais velha da casa. Em auto-gestão, comem nas bancadas onde trabalham, repletas de panelinhas. Ponderam optar pelo pronto-a-vestir porque as clientes de alta costura desapareceram. Fecham portas.


O Caso Sogantal
Cinequipa, 1975, João Matos Silva (não creditado)

"Nós vimos o povo português crescer", foram as palavras do 'não-realizador' João Matos Silva no final da sessão da Cinemateca. Membros do 'Movimento Esquerda Socialista' (MES), os objectivos de auto-gestão destas super mulheres que, incompreendidas, sacrificaram família pela luta, foram pouco apoiados, mal vistos até pelo Partido Comunista, pelo PREC. "Era preciso um patrão para reclamar os direitos, diziam-nos", disse Matos Silva. Maria Antónia Palha evoca o neto que passa por lutas interior-ó.laborais semelhantes nos dias de hoje. Ela, entrevistadora neste documentário, ficou com uma data daqueles fatos de treino. A luta era uma festa séria, uma felicidade. Pelo menos até embaterem na parede do pouco prestável Capitão Costa Martins, Ministro do Trabalho.

27/04/2014

Correspondência Zon

A\C Zon Multimédia,

Sou um cliente de longa data da Zon. Mudei de residência a 1 de Fevereiro de 2014 e após falar com o operador fui informado que na minha nova residência na XXXXXXXXXXXXX em Lisboa, a Zon não me consegue garantir a viabilidade do nível de serviços contratados.

Tendo apenas a possibilidade da parabólica nesta nova morada, e tendo eu várias televisões assim como serviços de internet rápidos, serviços que a Zon não me pode agora garantir, venho por este meio requerer a desligação do meu serviço e respectivo cancelamento do contrato.

Envio em anexo o comprovativo de renovação de cartão de cidadão, que inclui número das finanças xxxxx – tal como solicitado pela colaboradora da Zon que me informou deste procedimento.

Fico a aguardar a confirmação da vossa parte e agendamento para recolher o equipamento.

Melhores Cumprimentos,



A\C Zon Multimédia,

Como me foi pedido pela operadora Ana Costa, envio por este meio o comprovativo de morada com a minha nova residência: uma carta da EDP. Como já me confirmaram, a Zon não consegue garantir a viabilidade de serviços contratados neste nova morada.

Como também já referi num fax anterior, tendo apenas a possibilidade da parabólica nesta nova morada, e tendo eu várias televisões assim como serviços de internet rápidos, serviços que a Zon não me pode agora garantir, requeri a desligação do meu serviço e respectivo cancelamento do contrato que foi aceite.

Contudo, quero garantir que, de facto, o carácter de excepção do pedido de cancelamento é reconhecido e que os meses até ao final do período de fidelização a partir de Fevereiro não me serão debitados. Fui informado que seria assim por uma operadora vossa já há várias semanas mas entretanto recebi uma sms que parecia indicar o contrário, o que me deixou preocupado.

Peço que me enviem uma confirmação por escrito, email de preferência, que de facto o débito não será feito e que o último mês cobrado será Fevereiro.

Já tenho data agendada para recolhimento do equipamento em Março.

Melhores Cumprimentos,

18/04/2014

Nobreza de Espírito

Rob Riemen - Editorial Bizâncio, 2008. Edição de 2011

Riemen parte à procura do ideal esquecido da nobreza de espírito, começando a sua jornada, perscrutando a vida de Thoman Mann nuns estranhos e fortuitos encontros com a filha do escritor. Chegou às mãos através de uma prenda de alguém, de alguém que viu e foi atrás de alguém na Fnac.

Não pode haver civilização sem compreensão de que os seres humanos têm uma dupla natureza. Existência física e mundo das ideias. Têm conhecimento da verdade, da bondade e da beleza, familiarizados com a liberdade e a justiça, o amor e a caridade.

'É o peso material que dá o valor ao ouro e o peso moral que dá valor ao homem' - Baltasar Gracián
Goethe: "A civilização é um exercício constante do respeito. Respeito pelo divino, pela terra, pelo nosso semelhante e portanto pela nossa própria dignidade"

13/04/2014

Viagem ao princípio do mundo

Manoel de Oliveira, 1997, com Marcello Mastroianni, Jean-Yves Gautier, Leonor Silveira, Diogo Dória, Isabel de Castro, Isabel Ruth

Voltámos ao princípio do mundo, ao início da vida de Manoel de Oliveira, pelo seu imaginário, nesta que é a mais autobiográfica das suas obras. Ruínas, marcas que subiram pelas árvores acima, uma mão velha que já não chega ao fresco da jovem flôr. O norte, simples e belo, e uma tia desconfiada que se rende ao seu sangue. Mastroianni faz de Pedro Macau, de Manoel de Oliveira, na sua derradeira participação, e Manoel faz 'cameos' deliciosos. "Viver muito tempo é uma prenda de Deus mas tem o seu preço".