09/12/2015

Montanha

João Salaviza, 2015
Com Carloto Cotta, David Mourato, Maria João Pinho, Rodrigo Perdigão

O adolescente. Aquele corpo à procura do seu lugar no mundo. Solitário, aventuroso, triste e perdido. Preso no presente. Os Olivais, com a sua enorme piscina em construção, qual metáfora para a profundidade e medo que sentimos na adolescência. Os caminhos de choque familiares. Amor desorientado e belo.


What we do in the shadows

Jemaine Clement, Taika Waititi, 2014

Desde a minha infância que não me recordo de acabar de ver um filme e ficar com tamanha vontade de o rever vezes  sem conta. Viago é adorável. As amizade e interacções entre este grupo de amigos, eternamente jovens, foram delicadamente construidas. Hilariante e genial.

08/12/2015

Primavera Sound, 2015


Junho 2015, Parque da Cidade do Porto

Banda do Mar - Cápsula perfeita do bem-estar e agradável sabor que o Primavera deixa em nós.

Jungle - Altamente antecipado e com razão. Superou as mais altas expectativas. Intenso, poderoso, épico. O melhor e mais enérgico do festival.

Anthony and the Johnsons - Voz genialmente delicada e tresloucada mas tragicamente deslocada deste palco principal. A Baca. Por mais delicada a voz e pensado o espectáculo, nada funcionou. Talvez o pior do Primavera.

FKA Twigs - Gostei de vários. Brilhantes 'moves'. Na altura reportei: "A FKA twigs acabou de imitar vários dos moves que utilizo na discoteca".

Patti Smith - Se calhar escolhia Patti Smith. Foi bué da fixe. Tem a ver com a probabilidade de voltar a ver. Estou a por vários factores na escolha. Uma mulher maior que as suas décadas, que de alguma forma conserva e expande tanta intensidade acumulada.

Marc di Marco - Cool, relaxado, quente. Perfeito espelho do que aquece a alma no espírito do Primavera.

22/11/2015

As mil e uma noites, Volume I, II e III

Miguel Gomes, 2015
Com Crista Alfaiate, Rogério Samora, Diogo Dória, Chico Chapas, Luísa Cruz

Volume I O Inquieto
Meio sonho meio reportagem. Escape exorcizante dos quatro duros anos do resgate. Aliviamo-nos com a colmeia de vespas a arder, torçemos para que o galo não passe a cabidela, votamos nele. Bebemos chá com quem conta a sua história, procuramos salvação dentro de uma baleia ou no mar feio de Janeiro. Pobre Troika.

Volume 2 O desolado
O Manuel Palito só e sonhador, ajudado pelo homem da pastelaria, apanhado em casa, deliciado. Gosto, não sei porquê. Depois começo confuso mas sou  esclarecido na longa cena do julgamento, que tão bem retrata Portugal. Não percebo bem o cão, embora pudesse ter resultado a ideia de o casal jovem cruzar-se com si próprio daqui a 40 anos.

Volume 3 O encantado
A história dos tentilhões é absolutamente extraordinária, está bem contada e fotografada, mas este episódio não casa com a trilogia que acaba por se desfazer num castelo de cartas, resultando numa amálgama colorida e inquietante de histórias fantásticas. Preguiça ou falta de disciplina na edição, pareceu-me.

O Inverno do nosso descontentamento

John Steinbeck
Livros do Brasil
1962 -2006

Carregado de simbolismo tráfico. A corrupção e ganância geral corrompem lentamente a bondade e dignidade de Ethan. Pouco terá mudado?


p. 24 Uma manhã inteira não é uma coisa, mas muitas. Muda não só em intensidade de luz, crescente primeiro, para declinar depois, mas em textura, em humor, em tom e em matizes, deformada pelos mil pormenores de uma estação, o calor ou o frio, a calmaria ou os diversos ventos, diferindo nos cheiros, nas construções feitas pelo gelo ou pela erva, nos rebentos, nas folhas ou nos ramos secos e nus. E como o dia muda assim mudam também os seus actores: insectos, pássaros, gatos, cães, borboletas e pessoas.

O dia tranquilo e interior de Ethan Allen Hawley acabara. O homem que varria o passeio com gestos de metrónomo não era o mesmo que podia falar aos alimentos em conserva. Já não era o unimus unimorum. Amontoava as pontas de cigarros, os papéis dos bombons, as folhas das árvores e o vulgar pó, para depois empurrar tudo para a valeta, onde ficaria à espera do pessoal da limpeza e do seu camião.

p 65 Uma fortuna imaginária tem tanto valor como qualquer outra, até porque todas elas o são mais ou menos.

113 Por hábito, sempre deixei para amanhã o tomar uma decisão. Então, quando um dia disponho de tempo suficiente para estudar o problema, encontro-o já completo, resolvido.

p 114 Um dia em que, sentado junto ao leito, eu velava o doente, um monstro surgiu da minha água negra. Fui tomado do desejo de matar Dennis, de o degolar com os dentes. Os músculos das minhas mandíbulas contraíram-se e senti os lábios arrepiarem-se como os de um lobo prestes  a matar.
Quando tudo acabou, angustiado e com sentimento de culpa, confessei-me ao médico que assinou a certidão de óbito.
- Qual é a causa? Eu gostava dele.
- Uma reminiscência ancestral, talvez. Um retorno à época em que um ferido ou um doente eram um perigo para a tribo. Certos animais e a maior parte dos peixes dilaceram e devoram um irmão enfraquecido.

131 Pobre, ela é invejosa. Rica, será desprezível. O dinheiro não cura a doença. Só modifica os sintomas.

184 Possuo cinco bons fatos. Uma quantidade apreciável para um caixeiro de mercearia. Acariciava-os com os dedos. Chamava-lhes Old Blue, Sweet George Brann, Dorian Grey, Burning Black e Dobbin.

190 Nos negócios, como na política deve-se abrir caminho a golpes de machado. Uma vez triunfante, pode-se ser magnânimo e amável .., mas primeiro é preciso atingir o objectivo.

199 As comunidades, tal como os homens, têm os seus períodos de saúde e de doença, de juventude e de velhice, de esperança e de desalento.

202 Ode a Junho.

229 As pessoas que dizem não ter tempo para pensar surpreendem-me. Pela minha parte, posso pensar em duas coisas ao mesmo tempo. Pesar legumes, falar da chuva e do bom tempo com os fregueses, discutir com a Mary ou amá-la, zangar-me com as crianças. Não ter tempo de pensar deve equivaler a não ter vontade de pensar.

230 Poder e sucesso estão acima da moralidade e da crítica. O único castigo é o insucesso.

Jurassic World

2015, Colin Trevorrow
Com Chris Pratt

Um mundo de desilusão. Parece que os lindos gráficos e efeitos especiais retiram o incentivo para se ter actores com o mínimo de qualidade e uma boa história. 


Uma fraca homenagem a um dos filmes da minha infância e da minha vida. A anos luz do original, ou 200 milhões de anos para ser mais preciso. Foleirada.

Norwegian Wood

Haruki Murakami
1987, 2004 Civilização Editora

A leve e profunda dôr da adolescência de Watanabe. Parece não ter família. Condena-se à divisão entre duas paixões, condena-as a elas, cada uma à sua maneira. Solitário, viaja até ao retiro da montanha para tentar salvar Naoko. Falha no fim, mas talvez tenha alcançado algo no processo, não tenho a certeza. Guarda-se a dolorosa e tímida beleza da empatia humana, em breves, efémeros momentos.

219 Diz-me uma coisa Watanabe, alguma vez viste um inspector das finanças? (...) Claro que as receitas são baixas quando não há lucros! Apetecia-me gritar: 'vá inspeccionar as pessoas que têm dinheiro!'Achas que a atitude do inspector se alteraria se houvesse uma revolução?

220 Por todo o lado pairava aquele cheiro especial de hospital. Uma nuvem de desinfectante, fragâncias dos ramos de flores das visitas, o cheio da urina e da roupa de cama.

223/230  - Como costumas passar o Domingo?
              - A lavar a roupa. E a passar ferro. Não me importo de passar a ferro. Há uma satisfação especial em engomar as peças e torná-las macias.

232 É bom quando a comida sabe bem. É quase como uma espécie de prova de que você continua vivo.

264 Os domingos de chuva são penosos para mim. Quando chove, não posso lavar a roupa, o que implica que não poderei passar a ferro. Não posso passear e não posso deitar-me no telhado. Fico praticamente limitado a pôr um disco a tocar em modo de repetiçao e ouvir 'kind of blue' outra vez.

312 Era como se escrevesse cartas para manter unidos os alicerces da minha vida a desmoronar-se,

Lisbon Poets

2015, Luís de Camões, Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Fernando Pessoa

A tradução  de Camões é particularmente dura, interessante e até reveladora, para quem revisita os textos. Mário de Sá-Carneiro escrevem a doce vida da morte nos seus poemas e espel
ham vidas intensas e demasiado breves. Pessoa é simplesmente o mais incrível dos incríveis.

São dois abismos a beijar-se

Tiago Vieira, 31 Agosto 2015, Latoaria

Com Guida Marques, Maria Lalande, Susana Oliveira, Rui Raposo da Silva, Vânia Rodrigues, Teresa Machado, Inês Vaz

A Latoaria dá-se a conhecer em todo o seu esplendor, em cada recanto escuro e repleto de oníricas acumulações de objectos. Pobre e agressiva Inês de Castro, morta por um misto de desejo de poder e amor destrutivo.

Teria sido um embrulho perfeito se se tivesse contido aos cruzamentos repetidos dos pedaços de Pedro e Inês de Castro.

06/11/2015

Chet Faker

Julho de 2015, Coliseu de Lisboa

O Coliseu estava repleto de telemóveis e luzes modernas, e os nossos vizinhos eram insuportáveis. Chet Faker tentou resistir: pediu uma música sem filmes nem fotos. Ela respondeu a pedir uma selfie. Um tom diferente, mais íntimo e menos 'dance' que na mítica performance no 'alive', há dois anos. Vale sempre a pena ir.
 


01/11/2015

Deixem o pimba em paz

Bruno Nogueira, Manuela Azevedo, Filipe Melo
São Luiz, Julho 2015


Privilégio arrebatador e genialmente engraçado, terno, tecido com amor. Ode ao pimba. Reconstruído com afecto e humor, como tanto merece.

 Ode às coisas boas e ricas da cultura popular portuguesa, na sua simplicidade, no seu original bom humor e crueza.


A carta

Manoel de Oliveira, 1999
Com Chiara Mastroianni, Pedro Abrunhosa, Leonor Silveira

Um premiado Manoel de Oliveira já tinha esta história na cabeça, depois de um professor de francês avançado, de Braga, lhe ter falado. Sucumbe à rectidão de Madame Lefévre, moderna, como o novo Príncipe Abrunhosa, que era ele, mas preferia outro carro que não o vermelho. Lefévre é arrebatadora, Ela é boa pessoa mas o sentimento descontrolado tudo destrói.

Tudo o que tenho para oferecer: feridas

Tiago Vieira, Maio 2015
Latoaria

Papéis de jornais, animismo, vozes individuais de dôr e angústia. A absurdidade divertida da vida sempre presente. Cadeira Bausch a trabalhar, o caixão de tijolos fiadeiro. A repetição das lavadeiras: fortíssima.

Com Anaís Thinon, Luis Ribeiro, André Delgado, Guida Marques, Maria Lalande, Rui Raposo da Silva, Cláudia Domingues, Sofia Fialho, Tânia Bessa e Vera Freire.

Homem-Formiga

Peyton Reed, 2015

Filme sobre homem que encolhe e fica com força desproporcionalmente superior ao seu tamanho. Os adolescentes enviam muitos sms quando vão ao cinema.

31/10/2015

Ex-machina

Alex Garland, 2015

Com Alicia Vikander, Oscar Isaac

O novo e inteligente CEO, fresco, musculado, de intelecto arrogantemente superior, mas sem tocar sequer ao de leve numa gravata dos 'power suits' da velha guarda. Criou a máquina humana que vai superar o teste de Turing. E Caleb foi sorteado para a testar num simples e remoto mundo, a norte, sem rede. Foi sorteado não foi?


É como uma noite em pleno dia aos pedaços

Tiago Vieira, Julho 2015
Latoaria

Violenta emoção à flôr da mesa. Duro trabalho com a cadeira que não foi repetido na sessão imediatamente a seguir. Estranhos monólogos do líder. Um coração que abriu uma cabeça de excepção. Uma dança paralela para lá dos vidros. Estou a improvisar sobre pedras demasiado longas. A melhor performance individual da menina Marques.

Com Anabela Ribeiro, Guida Marques, Inês Vaz, Isadora Alves, Marco Lima, Maria LaLande, Miguel Raposo, Sofia Fialho, Susana Oliveira, Tânia Bessa, Teresa Machado, Tiago Vieira e Xana Lagusi.

11/10/2015

O mapa e o território

Michel Houellebecq, 2010
Editora Objectiva


Mordaz auto-comiseração individual e de nós enquanto sociedade. Reflecte aspectos mais ilógicos e incompreensíveis dos dias de hoje. Uma pequena janela para o mundo da arte e literatura, sua beleza e incompreensibilidade, que correm em paralelo, com a vida em geral. Houllebecq, num cameo literário alargado, destrói-se deliciosamente. Que prazer.

33 Voltava tarde para casa e nem sequer tentava dormir com a babysitter, apesar de ser uma coisa que a maioria dos homens tentaria fazer; ouvia a narração do que se passara durante o dia, sorria para o filho, pagava o salário pedido. Era o chefe de uma família decomposta e não pensava em qualquer recomposição. Ganhava muito dinheiro:  administrador-geral de uma empresa de construção, especializara-se na realização de estâncias balneares 'chave na mão'.

152 Na minha vida de consumidor -  disse - , terei conhecido três produtos perfeitos: os sapatos Paraboot Marche, o conjunto portátil-impressora Canon libris e a parka Camel Legend. Amei apaixonadamente estes produtos, teria passado a vida diante deles, tornado a comprar regularmente, por força do seu desgaste natural, produtos indênticos. Tinha-se estabelecido uma relação perfeita e fiel que fizera de mim um consumidor feliz. (...) É horrivelmente brutal, enquanto as espécies animais mais insignificantes levam milhares, às vezes milhões de anos a desaparecer, os produtos manufacturados são riscados da superfície do globo em poucos dias. (...) Sofrem ditames dos responsáveis da linha de produção, que sabem naturalmente melhor que ninguém o que quer o consumidor, que pretendem captar uma expectativa de novidade ao consumidor, e que na realidade não fazem mais que transformar a vida dele numa esgotante e desesperada busca, numa errância sem fim entre linhas eternamente modificadas.

205 No meio da derrocada física generalizada a que se resume a velhice, a voz e o olhar trazem o testemunho dolorosamente irrecusável da persistência do carácter, das aspirações, dos desejos, de tudo o que constitui uma personalidade humana.

248 O essencial era permanecer activo, era manter uma actividade intelectual mínima, porque um polícia completamente inactivo desanima e torna-se portanto incapaz de reagir quando os factor importantes começam a manifestar-se.

291 A economia não estava ligada a quase nada, a não ser ao que havia de mais maquinal, de mais previsível, de mais mecânico no ser humano. Não só não era uma ciência, como não era uma arte, ao fim e ao cabo não é coisíssima nenhuma.

27/07/2015

Destruição

Tiago Vieira, Latoaria  das Escadas do Monte, Maio 2015, com Guida Marques

A vida rasgada na areia. Atirada contra a parede e devolvida. Sempre que o amor me quiser, ela canta contra a parede, sem erro, à pressa. Uma ruína industrial invadida por corpos que parecem o triplo do número que são. Denegrida nos ombros agarrados à parede. Sempre a parede. Tantos objectos frenéticos. Maratona.

26/07/2015

O Sal da Terra

Wim Wenders, Juliano Salgado, 2014

Sebastião Salgado. Economista. Fotógrafo. Atravessou as nossas décadas perdido em viagem. Capturando o paraíso e inferno dos nossos mundos, mas principalmente os infernos que fazemos uns aos outros. 'Workers' e aquela foto no Brasil é talvez o meu favorito. Captura beleza que não é perceptível em vídeo, em presença. E ainda ensaia mudar parte do mundo com o Instituto Terra.

Relatos Selvagens

Damián Szifrón, 2014, com Ricardo Darín, Erica Rivas

Louco, divertido, negro, perverso, irrealmente familiar. Cenas inesquecíveis, para se contarem durante muitos anos: avião que cai nos velhinhos, veneno de ratos, road rage, carros rebocados, homicídios involuntários encobertos e um casamento épico. Ódio, violência, auto-preservação, racionalidade, raiva, amor e descontrolo: é a natureza humana. Somos animais.

1984

George Orwell, 1987, Abril 2012 Antígona, com direitos para Portugal desde 2007



Winston Smith. Na sua viagem condenada, ocasionalmente, acreditamos que a prometida semente da revolução de luz vai explodir, resolver. Mas a agonia é, simplesmente, crescente no suspense, no corpo e na mente. Neste último e eterno aviso de Orwell o totalitarismo quebra Winston, já quebrado desde o início.

p.6 O instrumento podia ser regulado, mas não havia meio de o desligar por completo

p.7 Havia que viver - e vivia-se, graças a um hábito que se fazia instinto - no pressuposto que cada som transmitido estaria a ser escutado e salvo na escuridão, cada movimento vigiado.

p.8 guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força

p. 30 Nada nos pertencia, excepto os poucos centímetros cúbicos no interior o nosso crâneo

p.38 Tal era a suprema subtileza: induzir conscientemente a inconsciência, para depois, num segundo passo, tornar-se inconsciente do acto de hipnose, acabado de levar a cabo.

p.54 Estamos destruir palavras, dezenas, centenas de palavras por dia. Estamos a reduzir a língua ao seu esqueleto. A décima primeira edição não há-de conter uma única palavra susceptível de se tornar obsoleta antes do ano 2050.

p.55 Coisa magnífica, a destruição de palavras. Claro que a grande quebra é nos verbos e nos adjectivos. E não só os sinónimos; há também os antónimos. Afinal de contas, no teu íntimo, preferias que se conservasse a velhilíngua, com toda a sua imprecisão e os seus inúteis matizes de sentido.

p. 167 Não lhe parecia, pelas recordações, que tivesse sido uma mulher excepcional, e menos ainda uma mulher inteligente; no entanto, possuíra uma certa nobreza, certa pureza, simplesmente porque a conduta por que se regia era apenas de carácter pessoal.

p.187 Winston afundou-se na poltrona e pôs os pés sobre a guarda da lareira. Era a felicidade absoluta, era a eternidade.

p. 269 Haverá sempre a embriaguez do poder, cada vez mais intensa, cada vez mais subtil. Sempre, a todo o momento, a emoção da vitória, a sensação de esmagar um inimigo indefeso. Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota a pisar um rosto humano.

p 327 Bernard Crick Sistemas autoritários de governação são maus mas a maior ameaça é o totalitarismo. O primeiro limita o nosso humanismo, mas o segundo destrói-o. Se o totalitarismo se tornasse a nossa vida de todos os dias, os nossos outros valores humanos, a liberdade, a fraternidade, a justiça social, o amor da literatura, o apreço pelo diálogo franco e a escrita clara, a fé na honestidade natural e na correcção natural das pessoas comuns, o amor pela natureza, o prazer de constatara diversidade dos homens, o patriotismo, que em Orwell significava simplesmente o amor à sua terra, que opunha ao nacionalismo, tudo isso desapareceria.

20/05/2015

Kafka à Beira Mar

2002 Haruki Murakami,
13ra edição 2009, Casa das Letras
Tradução de Maria João Lourenço

Loucura onírica regrada pela duas histórias paralelas, dura e volúvel como a pedra de entrada. As dualidades não são duais, são multidesdobradas em metáforas, símbolos e interpretações. Postas cá para os olhos e mentes do leitor.
Detective, contemplador. Murakami deixa a nossa mente ligar e preencher os espaços e concepções que deixa premeditadamente vazios. Um assassinado em sonho é tão grave como um real? Coronel Sanders a cumprir a sua desprezível função, simplesmente porque a sociedade o espera que o faça. O adulto e o adolescente são, na mesma pessoa, seres fundamentalmente diferentes. Podemos amar um e odiar o outro. Sonhar com a pessoa daqueles seis meses e meio. A jornada e o refúgio contemplado são o mais importante, a história, objectos poucos e a música.

62 "Que viva como se estivesse já morto: não terá nada a temer", escreveu Yamamoto Tsunetono, porventura o intérprete mais radical do bushido, código
de honra fundado, no século XVII, por Yanaga Soko e seguido pelos samurais", e alguns bascos.

141 É por isso que gosto de ouvir Schubert quanto viajo de carro. Precisamente pelo facto de a imperfeição por detrás de cada interpretação espreitar a cada curva. Essa profunda imperfeição artística estimula a nossa consciência, desperta os nossos sentidos. Se eu escutar uma interpretação absolutamente perfeita de uma peça absolutamente perfeita, posso cair na tentação de fechar os olhos e querer morrer ali mesmo.
Mas ao escutar a sonata em Ré maior apercebo-me das limitações próprias da capacidade humana e torna-se claro para mim que, até certo ponto, a perfeição só pode ser atingida através de uma série de imperfeições.

219 É segunda-feira e a biblioteca está fechada. Trata-se de um sítio calmo por natureza, mas em dia de descanso transforma-se num mundo esquecido pelo tempo. Ou então num local que sustém a respiração, com a esperança que o tempo não dê por ele.

232 Homens vazios segundo T. S. Elliot: almas que preenchem sem piedade a falta de imaginação com pedaços de palha seca, sem terem consciência do que estão a fazer. Insensíveis, que te lançam à cara palavras vazias de sentido, tentando obrigar-te a fazer o que não queres.

362 Coronel Sanders: O bem e o mal não me dizem nada. Sou um homem muito pragmático. Dêem-me um objectivo neutro e tudo o que me interessa é realizar a função para a qual fui programado. Verificar a relação de forças entre os vários mundos e certificar-me que está tudo em ordem, por forma a garantir que a relação entre a causa e o efeito funcionam e que as coisas desempenham o seu papel original.

380 Pego numa mão cheia de areia e deixo-a correr entre os dedos. Cai e, tal como acontece com o tempo perdido, torna-se parte do que já lá existe.

400 Jean Jacques Rousseau definiu, até certo ponto, civilização como o estádio em que as pessoas constroem vedações à sua volta. A civilização é o produto da falta de liberdade. As pessoas que constroem barreiras altas e sólidas são as que melhor sobrevivem.

479 - Acredita que a música tem o poder de mudar as pessoas? Que uma pessoa pode ouvir uma certa e determinada peça de música e conhecer uma grande mudança dentro de si?
- Claro que sim. Passamos por uma experiência, que funciona como uma espécie de reacção química, capaz de transformar algo que temos dentro de nós. Quando, mais tarde, reflectimos sobre isso, descobrimos que todos os padrões por que nos regemos se alargam mais um furo e que o mundo se abriu diante de nós de forma inesperada. Sim, já passei por isso. Não tantas vezes como isso, mas já me aconteceu.

490 Corvo: A guerra gera mais guerra. Lambuza-se com o sangue violentamente derramado, alimentando-se de carne morta. A guerra é em si mesma uma forma de vida perfeita e acabada.

20/04/2015

Pântano

Miguel Moreira, Culturgest, 27 Março 2015
Com Romeu Runa, Francisco Camacho e Catarina Félix

Uma história primordial repetida à exaustão. Sofri para sair das primeiras águas, para saltar no lodo primordial até as barbatanas se tornarem em pernas. Não tenho a certeza se isso chegou a acontecer, mas, a partir do sétimo holofote, foi inesquecível.

"O meu corpo é o meu País. Fossem antes estes corpos. Fosse o meu País assim. Livre. E ficar-me-ia disto uma espécie de boa esperança de que se fizessem mais Pântanos, que houvesse mais útero. E eu saberia mais de mim. Pântano, Útero, Culturgest", Guida Marques.

FACA - Festa de Antropologia, Cinema e Arte 2015

Cinemateca, 7 de Março


Tribo Planetária, 2011, Carolina de Camargo Abreu 
Os ritmos hipnóticos dos batuques tribais, são emulados nos electrónicos do trance. Reprogramação para limpar a mente. 'Save the xxxxxx forest': paga online para ver amor e salvar uma árvore.

Fios da Vida, 2013, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer
Dispensados por acta escrita e explicada. Lançados para uma nova família num espaço imponente, agora abandonado. Também eles e elas o foram uma vez e por isso reúnem-se regularmente para lembrar que é sempre tempo de recomeçar, de reconstruir.

Sobretudo poesia, 2013, Gabriel Campos
Senhor com balões entrega papéis com poemas para transeuntes os lerem, pouco inspiradamente. Pouco inspirado é o poeta em competição.

Pimentas nos olhos, 2015, Andrea Barbosa e Fernanda Matos
Um câmara fotográfica nas mãos de um habitante de Pimentas, um dos mais antigos bairros da periferia de São Paulo. A periferia mudou de floresta para selva impessoal. As memórias e reuniões da comunidade confirmam que o cimento explodiu.



The Foxcatcher

Bennett Miller, 2015, com Steve Carell, Channing Tatum e Mark Ruffalo

Poderoso e inquietante Steve Carell, numa performance avassaladora, que não imaginava nele. História-documentário sobre luta greco-romana que é, no fundo, ironicamente, um evocar de uma clássica tragédia grega. Vale a pena dar olhada no Youtube para ver os verdadeiros John Dupont, Mark Schultz e David Schultz.


Rosewater

Jon Stewart, 2014, com Gael García Bernal, Kim Bodnia

Há qualquer coisa que falha, não sei se o ritmo, mas é um interessante olho dentro de uma sociedade misteriosa e fascinante.

02/04/2015

Wolf of Wall Street

2013, Martin Scorsese

Tão notável como o bater de microfone na cabeça de DiCaprio. Não compreendo quem ouve Jordan Belfort como 'motivational speaker' ainda nos dias de hoje. 
Só pela cena com Matthew McConaughey vale a pena.

Mark Hanna: Nobody knows if a stock is going to go up, down, sideways or in circles. You know what a Fugazi is?
Jordan Belfort: Fugazi, it's a fake.
Mark Hanna: Fugazi, Fugazi. It's a wazy. It's a woozie. It's fairy dust.

Eurovision

Pedro Zegre Penim, com André
Teodósio
Sábado, 14 de Fevereiro 2015, Culturgest
Produção Teatro Praga, ZDB, Transforma AC 

Difícil de qualificar a complexidade de um monólogo de tal extensão em todas as línguas-mãe da União Europeia. Há uma certa beleza nesta construção, embora eu não a consiga precisar. Se aparece uma espingarda no primeiro acto ela terá de ser disparada no último.

Dança-se como a Chiquita? Desenha-se em tempo real 'A imagem', de Beckett, e há uma rígida 'checklist' académica para ajudar a classificação da peça pós-moderna que é uma delícia.

01/03/2015

Tear Gas

Pedro Zegre Penim, Teatro Praga

Na semana passada estive na Grécia, não fui lá protestar. Não fui fazer turismo negro. Queria experimentar gás lacrimogénio, fui devolver um livro, e dançar, de várias formas e feitios, e  falar com um médico falso na plateia e receber gotas nos olhos. A Europa é um conto de duas cidades, Atenas e Jerusalém. E que excelente conto este.

The imitation game

Morten Tyldum, 2014, com Benedict Cumberbatch

História fantástica, lançando luz a um episódio até há pouco mal conhecido. Alan Turing salvou milhares de vidas, distantemente, pela ciência e matemática. Caiu na injustiça da falta de reconhecimento e apoio por um país que protegeu como poucos. Ao menos, na injustiça histórica, já não cairá.


27/02/2015

The Theory of Everything

2014, James Marsh, com Eddie Redmayne

Esquecemo-nos que não é ele. Que Eddie Redmayne é um actor. História de grande humanidade, pela 'normal' e revigorante atitude de Hawking ao longo da sua vida, completa com todos os defeitos e virtudes de todos nós, juntos com uma inteligência e força de vontade únicas.

Birdman

2014, Alejandro Gonzalez Inarritu
Com Michael Keaton e Edward Norton

Obra-prima inesperada e revigorante. Técnica exímia de câmara, submerge-nos, como nunca, no mundo físico, ao mais pequeno pormenor, da Broadway.

Os seus contornos reais e imaginários deixam-nos a sensação de o conhecer como a nossa casa. Brilhantes performances de Michael Keaton e Edward Norton. Eu ia lá entregar o Óscar, mas não foi preciso.

01/02/2015

New design razorblade - pouco fusion

Como cliente da Goodlife, a minha última compra foi um pack de 12 recargas compatíveis com Gillette Fusion por 24,80 euros. A factura da transacção, de 24 de Outubro de 2014, é VDN 16/46407.

Visto que ainda tinha outras para utilizar, experimentei pela primeira vez as lâminas esta semana. Lamentavelmente, a qualidade é péssima e praticamente impossível fazer a barba com elas, tal é a dr que infligem.  Gostaria de saber se é possível eu devolver as lâminas e reaver o meu dinheiro. Aconselho-vos a remover este mau produto dos vossos canais de venda.

Na melhor das hipóteses vou poder utilizá-las para tirar borboto das camisolas. A poupança de 40 pct é uma ilusão.
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Bom dia

Lamentamos a insatisfação com o artigo.
Aceitamos a devolução dos artigos selados , sendo que o componente da encomenda se refere a artigos de higiene.

Seguem os os procedimentos.

Vimos informar que o produto deverá ser devolvido em perfeito estado de conservação e com todo o conteúdo original, instruções; embalagem original e todos os acessórios. Se isto não se verificar, o reembolso não será feito.
Mais informamos, que os encargos com o transporte das devoluções são da sua responsabilidade.

Dispõe de 14 dias para proceder à devolução a partir da data de recepção da encomenda no seu domicílio, para a seguinte morada (em correio registado ou a empresa não se responsabiliza):

GOODLIFE
Estrada da Outurela, 118
Parque Holanda - Edifício Holanda
2790-114 Carnaxide

Solicitamos que coloque na embalagem que vai devolver, impreterivelmente, uma cópia do voucher do artigo e a factura que recebeu, bem como a indicação se poderemos proceder ao reembolso do valor em crédito na sua conta de cliente para descontar numa futura compra.

Imprima por favor o pdf em anexo e junte a informação à sua encomenda.

Melhores cumprimentos,

Rita Sousa
Customer Care

Estrada da Outurela, 118
Parque Holanda – Edif. Holanda
2790-114 Carnaxide
Tel.: (+351) 213 261 360
Fax.: (+351) 214 201 369
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Cara Rita Sousa,
Não consigo compreender como posso testar a qualidade deste produto sem o abrir. Assim, segundo as indicações que me deu, não tenho forma de devolver um produto que não cumpre com os mínimos requisitos de qualidade ou com o mais básico da função a que se propõe.

Além disso, seria justo existir um processo de devolução sem encargos à cabeça para os vossos clientes.

Por favor diga-me se é possível resolver esta questão de outra forma. Penso que os potenciais danos reputacionais para a Goodlife justificam maior atenção e cuidado com os clientes.


Sight Is The Sense That Dying People Tend To Lose First

Tim Etchells, 14 Novembro 2014, com Jim Fletcher
Teatro Maria de Matos
Forced Entertainment

Lista de factos mais ou menos óbvios ao bom estilo de Etchells, que, ao verbalizá-los, qual corrente de consciência, constrói interessantes momentos de introspecção. Materializa a beleza e o absurdo dos objectos e fenómenos à nossa volta e sobre os quais não pensamos.

é um privilégio ter um artista, um escritor desta qualidade na cidade. De identidade vincada, adorador de listas. O monólogo trabalhado por Jim Fletcher é seco e divertido. Contextualiza o banal num universo maior. Retrata o conhecimento banal que paira sem repararmos. Gostei do documento 'top secret', com palavras vermelhas, numa gaveta escondida, que só uma pessoa sabe onde está.

The telephone is an amazing invention. A mouse that is dead is sometimes referred to as a specimen. Love is difficult to describe. Fire is what happens when things get very hot. A window is an opening in the wall of a room built by people who want to see outside. A hostage is a prisoner used to bargain with. Lions, horses and women can make interesting subjects for statues.

19/01/2015

Ser grande

Esta tarde por volta das 1530, quando descia de bicicleta pela Avenida da Liberdade, o taxista da viatura 29-76-NS encostou desnecessariamente o seu taxi à minha bicicleta, esbracejando. Eu estava à espera de um sinal verde mas, naturalmente, guardava distância da viatura à minha frente que, por coincidência, era um táxi, encostado, a recolher um passageiro. 

O senhor taxista  da viatura 29-76-NS queria que eu tivesse arrancado mais rápido, irritou-se. Eu fiz sinal para ele me ultrapassar, o que ele fez bruscamente, insultando-me.

"-Assim nunca hás de ser grande", disse, além dos insultos, referindo-se ao meu manifestamente pequeno velocípede. Apesar de, aparentemente, atestar à sua grandeza corpórea, esta é uma conduta distante do que eu espero de um profissional. Deixa mal a sua empresa e a sua profissão.

18/01/2015

Inquietude

Manoel de Oliveira, 1998

Três fábulas a mostrar como Manoel de Oliveira vive esta comédia humana em seu torno.
A morte e as mulheres e o magnetismo entre eles. A loucura da imortalidade, que apenas a morte oferece.
Manoel de Oliveira tem os dedos dourados, é um eterno bruxo do cinema.
Ah, e dança, se dança.

"A felicidade é um detalhe"
"Estamos mecanizados, somos quinquilharia ambulante"

17/01/2015

Nightcrawler

Dan Gilroy, 2014, com Jake Gyllenhaal

Alucinado e intenso, Jake Gyllenhaal faz o filme. É interessante, ainda que talvez caricature a sua relação com a editora do canal regional de televisão. Lou Bloom é o exagero de um monstro moral que por vezes domina a dinâmica das notícias. Um monstro que não é mais que um lado mais sombrio da natureza humana, seu voyeurismo e fascínio pela violência, crime e ódio. A desgraça dos nossos pares vende. O ilusório mundo corporativo de Bloom, a sua visão, perversidade e fácil descartamento do que para ele trabalha, como ferramenta, é provavelmente mais real e disseminado do que nos apercebemos.