19/01/2007






E la voaram dias e noites de trabalho e entregas. O produto final fica aqui descontextualizado mas intrigante. Gostei de aprender uma ou duas novas dimensoes do que ja vai sendo para mim uma mini-paixao.


A Arquitectura.




Adormeci e era Sophie Pauline Gibling, esposa de R. Schindler, escrevendo à sua mãe sobre a sua casa nova em Kings Road.



Los Angeles, 20 Fevereiro 1923


Querida Mãe,



Aconteceu. Não sei bem quando é que começou. Olhar para trás e recordar aquelas imagens do Rudolf sempre tão empolgado, sempre tão ávido, tão acordado deixa-me um sorriso na cara. O olhar do Rudolf sempre viu imenso. Brilha enquanto observa e estuda as estórias às quais as madeiras das casas podem ou não convidar. Acredito que esta nossa nova casa nos entrega ao encontro original da nossa dimensão humana.


Lembras-te de uma carta que te escrevi há uns anos atrás onde eu me perdia em devaneios sobre uma casa futura? Nela, falava-te que gostava de ver nela um ponto de encontro para pessoas de todas as classes sociais. Acho que este lugar de onde te escrevo é essa casa. Gosto de pensar nela como uma máquina de encontros por excelência, encontros voluntários e involuntários. As paredes e as ausências delas guiam-nos uns até aos outros. É um projecto aliciante. A casa é para três famílias, queremo-la como um ponto de encontro cultural, onde, por exemplo, o quarto de hóspedes aguarda personagens para nos desafiar e serem desafiadas.


Ter feito parte da evolução daquele olhar e discutido os meus desejos de habitar com ele ficará sempre comigo como uma memória bonita. Uma memória que presencia o nascimento de um lugar onde não só o seu percurso indissociável de Otto Wagner e de Wright estão presentes, mas onde também materializámos a nossa necessidade pessoal e conjugal de indulgência. Algo que, como podes imaginar, no bulício e cacofonia de Los Angeles tanto nos tinha vindo a escassear. Para isso podíamos facilmente ter erguido uma daquelas casas-castelo encharcadas de requinte em interiores privados. Fizemo-lo porém de maneira diferente. Discutimos a nossa vontade de conjugar a recatez do privado com o convite ao caos e a reinvenções nos cruzamentos de planos, vozes e sensações. No fundo procurámos uma casa capaz de entregar o interior ao exterior, capaz de unir estes dois mundos que hoje em dia parecem ser tão frequentemente arrancados um do outro.


A cozinha comum partilhada é central à casa mas o jogo dominante é aquele entre os quartos interiores e os pátios exteriores. Só as casas de banho têm uso fixo, de todos os recantos cooperativos que povoam a casa, a cozinha age naturalmente como o recanto instrumental de partilha, produção e subsistência dos ocupantes. As facilidades de entrar e sair são óbvias, é quase como se a casa não acabasse onde pensamos que acaba, como se os seus limites sejam variáveis e ela se adapte e viva como um organismo vivo. Partindo dos recantos dos nossos quartos, ouve-se constantemente um chamamento para uma perscrutação da luz que parece ser exterior mas que afinal pode não o ser. Os painéis deslizantes dão uma forte sugestão de impermanência. Teimam em abrir, em entregar-nos recorrentemente este nosso pátio-jardim que vai sendo cada vez menos pátio-jardim e cada vez mais casa.


A luz parece entrar por todos os lados, entra e volta a sair em fluxos, em vagas. Quando não é a luz do sol é a luz de uma fogueira ou de uma lareira. Lareiras e fogueiras que se multiplicam miscígenas, imperceptíveis, indivisíveis. Esta micro-sinergia celebra ao nível do detalhe a união maior que nós criamos entre o íntimo do privado e a liberdade do colectivo. O interior e o exterior. A composição formal em L´s que se cruzam num só piso.


Viver com o casal Chace tem sido um desafio tão confortável como inquietante. A casa propicia-nos uma forte intimidade com o ar, o solo, o sol. Nós, ocupantes, somos no fundo ocupantes não por ocuparmos a casa mas por nos ocuparmos uns aos outros. Nestes primeiros meses, temos deixado as horas levarem-nos enquanto conversamos, discutimos e debatemos a arte, a política, o banal e o erudito. Enquanto criamos e trabalhamos. A experiência íntima do ver e encontrar que a casa nos entrega exponencia as possibilidades de vivência da casa. A estrutura da casa tem tido o dom de tornar a experiência “do encontrar” num hábito e numa rotina que se reinventa. Todos vemos e somos vistos e o conforto nunca é um conforto só. Não existe o recolhimento egoísta. Sabes Mãe, creio que é isso que mais gosto na casa, o facto de mais do que habitarmos nela, as suas madeiras convidarem-nos a habitarmos uns nos outros.



A tua filha, Sophie Pauline Gibling




Adormeci e era um desconhecido a escrever a um desconhecido sobre a minha nova forma de habitar.


Nenhures, futuro



Aconteceu. Não sei como é que vim aqui parar.


Sei que me afastei de algo. Sei que estou protegido sem saber bem do quê. Sei que me posso perder em indulgências, perder-me indefinidamente. Não sei o que penso disso. Não sei se tenho medo de o fazer. Não sei se depois de me perder em indulgências que desconheço me posso voltar a encontrar nelas.


De repente, lembrei-me de procurar uma janela e não encontrei nenhuma. Tentei uma segunda vez e subitamente reparei que a casa era a janela. A janela autónoma e adaptada. Uma janela por onde não se via nem se era visto. Uma janela que não resguardava, guardava. Guardava-me de fumos, poluição, ódios, canos enferrujados, lâminas, terroristas, pistolas, seringas, doenças, lixo, gatos doentes, pontes a cair, ácidos, desastres de automóvel, cheias, tsunamis, gelos, chamas, tremores de terra, vulcões, furacões, cometas, cogumelos venenosos, ruínas, casas a cair, televisões, cinemas, livros, cores, músicas, sabores, temperaturas, pessoas, e muitas outras coisas que não conhecia mas que eu parecia não gostar. Coisas que a membrana, sem esforço, se encarregava de ocultar. Estava tão protegido que não sabia se estava só.


Enquanto vou tentando aperceber-me de tudo aquilo do qual a máquina me resguarda oiço um zumbido monofónico praticamente inaudivel. A máquina chama-me a um canto. Não, minto, não era um canto. Esta casa não tem cantos, era o centro dela. Chama-me a si, faz questão de me dizer que tudo o que eu necessito ela guarda ali mesmo naquele centro. Num ecran, letras sem cor anunciam uma mensagem: - “és autónomo, limpo e esterilizado”. Li a mensagem sem sorrir. Não entendia bem porquê. Era autónomo com todo o tempo do mundo, toda a segurança do mundo. E sem promessas.


È decididamente uma bolha, recheada de tecnologia. Onde dificilmente imagino um quotidiano, um ritual doméstico, encontro intimidade ou privacidade. A verdade é que nem faz sentido pensar nestes termos. Estou num invólucro climatizado. Numa cápsula artificial em que me é sugerido existir. ‘Habitar é fácil’, ‘um habitante capaz de afirmar a vontade de inventar uma representação de si próprio na sua casa’. Estas frases surgem-me no pensamento. Talvez tenha lido sobre isto em algum lado. Qualquer coisa sobre o futuro.


Procuro referências. A confusão do desconhecido, destes nadas escuros que não entendo, devagar começam então a fazer sentido. Estava no ventre materno. Aquecido, protegido, acariciado por algo que ainda não conheço. Estava protegido sim, mas a vontade de conhecer o exterior era por demais.



Ass: Ninguém.






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